quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Dos ofícios

Eu nasci predestinada a confessar as histórias do silêncio, e como são cinzas os dilemas que provém da mudez.
São cinzentas, molhadas e férteis as nuvens carregadas de chuva.
Eu sou uma criatura que revela o deserto escuro, e só faço moradia no que há entre o nada e o tudo. Mas só saio de lá com o que não pertence a mim para devolver a ti.

Na Costa Oeste da Vila

Hoje acordei daquele sonho que se repete e fere,
"Sinto que sofro vertigens com a sombra do meu corpo sobre o mar. Então escuto o marulhar revolto contando que o tempo brinca com as marés e foge à desfilada."
É sempre uma confissão, como levar a concha aos ouvidos e escutar canções em dialetos antigos. Lembro até que ancorei naqueles rochedos, embaraçada em espumas brancas. 
"- Pescador, perdoe-me a alma livre, nunca aprendi mesmo com os náufragos! É que desde lá, despenhei num abismo redemoinhante e naufraguei em ventos fortes. Mas, ao acordar, senti o sibilo do vento por entre aquelas rochas, cronometrando todas as minhas vaidosas verdades. E em instantes, eu era, novamente, prisioneira dos teus rochedos."
Hoje acordei daquele sonho que se repete e fere, como andar de pés descalços em corais de recifes antigos.  

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Dia de Recital

            Hoje é dia de recital. Minha cantiga é só para acautelar que a noite esfriou e os agasalhos estão mofados pelo desuso. Na verdade, profiro trovas porque talvez prefira não compor canções. Substrato confessional, sem reprimendas. 
Apanhei lápis e papel, porém fui acometida pelo gracejo cubano de uma conga afinada. A temperatura registrada na cidade era de nove graus e provavelmente minha declamação sofria ares mórbidos, assolados pelo frio.
Busquei, de imediato, aquecer a lareira de alvenaria construída com zelo num recinto espaçoso. A fuligem e a fumaça não se espalha por aqui, mas minha voz alcança as reminiscências capitaneadas pelo solista que persevera no cortejo.
Confira a faixa "Dia de Recital" no EP ENCONTROS DIÁRIOS:



Encontros Diários no SoundCloud


Na tentativa de facilitar o acesso dos deficientes visuais aos devaneios do meu blog “Encontros Diários”, lancei há dois anos atrás o áudio livro “Encontros Diários”, utilizando a plataforma SoundCloud para suprir essa demanda pouco trabalhada por nós, escritores cearenses.  

A ideia é ouvir para ver outros mundos, outros territórios “não territorializados” e, assim, dar voz a instabilidade das nossas certezas, tão bem escondidas no porão. Por esse prisma, “Encontros Diários” que de início nasceu para ser utilizada apenas para pessoas com deficiência visual, já ganhou adeptos, até mesmo dos não deficientes.

Encontros Diários pelo SoundCloud é um “escutatório”; um espaço construído diariamente, a fim de, juntos, desbravarmos as palavras em narrativas insondáveis – ainda bem.

Entre e fique à vontade para ouvir e imaginar.


Lisiane Forte
Obs.: O Áudio livro, livro falado ou audiobook é uma mídia com gravação de conteúdos de um livro lidos em voz alta. Pode-se encontrar áudio livros gratuitos ou pagos em sites de domínio público e livrarias.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Cobogós

A fachada da casa de dona Noemi amanhecia amarelada pelo sol que, devagar, adentrava pelos cobogós. Seu feitio era feito de reboco e aroma de café coado. A vivenda era avarandada, e dada aos contos dos curiosos que ali passavam a contempla-la.
Pelos corredores dourados da casa, Dona Noemi, célere e impetuosa, não escondia as lonjuras que a atormentavam. Por ser das bandas de cá da cidade, ela nunca soubera comer da vida pelas beiradas. Com a mesa posta, costumava destrinchar as furtivas memórias para as próximas garfadas.
Por detrás da fachada da casa amarelada, seguia-se a vida cheia de brechas, impossíveis de decifra-las.



Nota 
Noemi Pimentel Ramos Forte (1905 – 1989), natural de Baturité/Ce, avó de Lisiane Forte.

Apresentação do Livro Liames na I Feira da Literatura Cearense/ Edição 2018


Fui convidada pela Editora Premius a realizar o lançamento do meu livro LIAMES na I FEIRA DA LITERATURA CEARENSE que ocorrerá de 08 a 10 de março, no Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB), em Fortaleza/Ce. A programação está imperdível e é toda GRATUITA.

E será uma honra contar com a presença de todos às 11h no dia 08 de março no Centro Cultural Banco do Nordeste - CCBNB.
Forte abraço!

Lisiane Forte

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

De todos os pesares

O dia chegou repleto de lucidez e precisão.

E eu recomeçava em outro lugar – dada a previsão.

Estava escrito nos muros da cidade que seria maçante perceber a existência das horas.

E como eu estava silenciosa.

É que às vezes o silêncio pode ser alto demais,

Enquanto todos pagam suas contas abismais.

Ao cair, um ou outro escapava dos golpes de vento.

Esses eram o que esperavam pelo advento.

E eu só tinha o hábito de dissecar milagres,

De todos os meus pares, os pesares.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Rua dos Milagres

Nada restará se tu esqueceres dos segredos do teu quarto.
Verde-lima, percevejo, dos males aparto.
De todas as quinquilharias ajuntadas aos enigmas, descarto:
os relógios, os cabideiros, os cestos organizadores,
E então infarto.

Desmemoriado, lembre-se da Rua dos Milagres, nº 61!
Azul, aromas e rumores, não era um lugar-comum.
Das saídas furtivas às prendas oferecidas, estava sempre em jejum.
Está tudo no álbum, e alguém batia à sua porta, podia ser eu,
E isso era bem comum.


sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Anunciação

Os tempos melancólicos trazem de volta as folhas amareladas daquela terra orvalhada. De repente, vejo as ruelas silenciosas desafiarem os outonos imaculados de Santa Irene, esforçando-se a afadigar todos os meus devaneios míticos.
Furtiva e transgressora contorno os caminhos oníricos, e avisto Santa Irene a banhar-se numa lagoa de águas salgadas. A divindade, serva fecunda de Deus, que um dia renunciou a toda vaidade, retoma as suas vestes azuis e seduz os casais com as suas premonições.
Após sua aparição, Santa Irene dissipasse pelos penhascos, instigando ainda mais os meus presságios de setembro. Sim, de tempos em tempos, pressinto seus regressos entre as folhagens douradas das minhas veredas delirantes.
Santa Irene abençoa o meu espirito e nunca recusa os meus cantares; afundo os pés nas areias negras daquela praia, e, mais uma vez, com vestes brancas e sandálias nas mãos, anuncio pela ilha todas as suas quimeras. 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Eterno retorno

Atormentados, perpetuamos vestígios úmidos de propósito: sangue, suor e lágrimas. Descrentes, deixamos rastros imperfeitos, inconscientes da dor que não quer ser interrompida. E inseguros, vagueamos entre linhas e cores, numa diáspora que não tem intenção de cessar.