Nos anos 80, Jesuína era uma infante¹, e o provedor do lar,
como em tantos outros lares, era o homem – ele apenas. Seu José, não era um
homem como se diziam por aí; ele acreditava em barrigas d’água que apareciam do
nada e em seres angelicais que desciam à terra. Jejuava e orava aos céus. Sua
menina, a Jesuína, passava o dia entre os galhos das mangueiras mais altas,
chupando as mangas mais apetitosas que encontrava, saboreando-as. Ela rebolava
as frutas para o pai. Seu José ria daquela cena – Jesuína nem sabia que isso
era coisa de menino. Com a mesma liberdade, Jesuína andava suja e descalça
pelos muros das casas, todas interligadas. Era a Cidade dos Funcionários²,
reduto dos considerados “gente de classe média”. Jesuína só entendeu mais tarde
a expressão: “essa média que as pessoas fazem, sabe? ”, quando leu um livro de
Marilena Chauí na Universidade.
- Que privilégio, Jesuína entrou numa universidade particular,
todos enchiam a boca para falar!
Bota maquiagem, roupa nova; bota perfume francês feito na
esquina.
- Bota salto alto para saltar mais alto, a sua Maria dizia –
a mãe.
Seu José apreciava a
moça que sabia ler de tudo. Ele dizia para todos os vizinhos que Jesuína, ainda
menina, leu Cavalo de Tróia 1, 2 e 3. Ficção, tudo tão inusitado para seu José.
Agora, ele tinha alguém para conversar em casa. Seu José passou um tempo sem
comprar roupas novas para pagar os estudos de sua moça tão inteligente. Jesuína
era grata, mas encorpou e não gostava tanto assim dos enfeites, do azeite, dos
deleites. Trabalhoso esse negócio de esticar cabelo, de colocar pó na cara e do
cheiro de perfume da vovó que parecia não combinar muito bem com algo ali. Um
dia, pelo janelão do Paranjana³, avistou uma coisa no lixão, e foi quando
saltou o salto que teve – era o livro das liberdades inventadas. Jesuína lia e
relia. Toda vez que lia o livro das liberdades inventadas, uma lágrima caia. E
era cada vez menos pó na cara, menos vestes, menos enfeites. Tudo era cada vez
menos, menos a verdade. Ela estranhou todas as coisas que eram demais, não por
serem intensas, só as que eram a “mais” mesmo. Então, aumentou o seu medo, era
demais o medo, porque agora ela era de “menos”, como uma “cachorra de rua”, já
toda açoitada por comer do lixo dos outros.
Estranhava ela.
Estranhavam ela.
Estranham ainda dela.
Lisiane Forte
...
1 – ETIM lat.
infans,āntis 'que não fala, que tem pouca idade, novo, pequeno, criança'
2 - Cidade dos
Funcionários é um bairro de Fortaleza localizado no sudeste da cidade. A região
foi adquirida há mais de 50 anos pelo governo do estado, loteada e vendida para
funcionários públicos do estado. De onde foi tirado o seu atual nome. É um dos
bairros mais populosos de Fortaleza, e onde fica localizada a Igreja da Glória
uma das mais procuradas na cidade para casamentos católicos. Ultimamente o
bairro cresceu muito, está localizado na região que mais cresce na cidade de
Fortaleza, ano após ano, mais prédios, condomínios e casas são construídas. No
bairro existem diversos comércios, restaurantes, padarias, shoppings, escolas,
praças, farmácias, supermercados, igrejas, postos de combustível, entre outros.
3 – Antigas linhas de
transporte público de Fortaleza: Paranjana 1 e Paranjana 2.