domingo, 24 de dezembro de 2017

De barriga cheia

Há tempos atrás, os meus pais costumavam comprar roupas novas para a noite de natal. Lembro-me que tudo era muito prematuro; as crianças recebiam os presentes antes da data, e seguiam-se os seus gostos.
No dia vinte e quatro, era do nosso feitio iniciarmos cedo a peregrinação entre as casas de minhas avós. Não me lembro de árvores ornamentadas, luzinhas brilhantes ou papai Noel, mas de abraços afetuosos e sorrisos brilhantes.
Devido ao horário, as ceias nunca estavam postas à mesa. Conversávamos; entregávamos e recebíamos presentes; beliscávamos alguns petiscos, e saíamos com fome. Meu pai não aguentava aguardar por horas afinco as badaladas da meia noite a fim de jantarmos.
Em vão, buscávamos restaurantes abertos pela cidade, porém todos fechados. Jantávamos em casa, e todo ano essa história, que já rendeu várias gargalhadas, se repetia. Até que um dia, assumi a organização das nossas celebrações natalinas e passamos a dormir de barriga cheia.

sábado, 23 de dezembro de 2017

Idas e vindas

Estou aqui mais uma vez. Desertar-me é tão visceral quanto regressar ao estado natural das coisas. E da última vez que fui maturei como uma borboleta: súbita e graciosa.
Faz poucos dias que atravessei um deserto inóspito, e ausentei-me de tudo o que não era eu. Dos clichés aparvalhados e das tenebrosas hesitações. Avanço para longe daqui. Do que conheço saio à galope, sem titubear.
Desde a última viagem, ansiava deixar pelo caminho as couraças que tomei emprestado para mim. Parti para devolvê-las, e nunca mais usa-las. Sai de todos os lugares que costumava “fazer sala”. Retalie por principio; debochei de tudo o que era divino; puni os culpados; sai impune às vezes, e cai no ostracismo.
E com todos os meus contrários, estou aqui mais uma vez.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Apanhadora de conchas

Há quantos anos apanho conchas na areia da praia? Tenho uma coleção delas, por todos os lados. Um dia me disseram que as conchas marinhas são as asas partidas dos anjos caídos.
Quando o mar ressaca, os anjos caem apunhalados pelos seus próprios desejos, e deixam as suas asas na beira do mar. Desde então, na maré baixa, saio à procura das mais belas espécies. Outrora bivalves brancas e enrugadas; hoje, coloridas e ornamentadas.
Ainda na praia, avisto os anjos caídos, curvados e sôfregos a procura das profundezas mais execráveis. Tornaram-se criaturas diabólicas sem a presença da luz, e indignados se escondem pelas sombras dos homens. Afasto-me, não sem sentir dó dessas almas frívolas e atormentadas.
Li em algum lugar que os anjos, como os humanos, têm livre-arbítrio: podem fazer escolhas. E alguns decidem deixar suas relíquias preciosas a seres que podem compreender as suas agonias.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Sem horas

Atribulava-me considerar que aguardava ansiosamente pelas quintas-feiras. Arrastava-me em horas enfadonhas pelos corredores do escritório, e finalizava um dia cardíaco com frivolidades sociais. Tardei a convencer-me do óbvio: eu não pertencia aquele lugar.

Passaram-se alguns anos, e ainda lembro-me das escolhas impetuosas, nocivas e arbitrárias. Hoje é quinta-feira, e já é quase meia noite.  Desvio o olhar do computador, abro o frigobar e procuro por algo doce, mas só tem água. Recordo que fiz o dia de hoje sem horas, e aproximei-me de cada cortejo proporcionado pelo tempo que insistia em fazer-se infinito. 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

A meu tempo

Acordei a meu tempo.
Não estava em casa, e ainda era cedo. Cedo o bastante para transitar pelo quarto e festejar o deslumbre do que é sentir isso pela primeira vez. Sem pressa, recolhi todos os meus pertences, e sem tomar o desjejum saí à francesa pela porta dos fundos.
 Dirigi pela cidade ainda fria e vazia, o que me fez acelerar a lucidez desgastada pelos sonhos enigmáticos de ontem. E a cada esquina alcançada, a poética outrora reprimida fez-se presente.
A manhã estava nublada, e eu precisava finalizar os últimos detalhes para a publicação do meu livro. Passaria à tarde numa deleitosa confraternização entre amigos, e não haveria tempo para debruçar-me sobre os meus escritos. E escrever não é tarefa fácil, exige grande devotamento as suas contemplações.
Surpreendeu-me rever textos antigos, a ponto de confundir-me distinguir em que época da minha vida estava a confessar. Não é todo dia que percebemos o que já deveríamos ter descortinado.
Dormi a meu tempo.