quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Trem Noturno

De longe, avistei quando Ana embarcou naquele trem noturno. De mãos atadas e entre escolhas, silenciei o meu adeus. Considerei sobriamente calar o meu pesar.
Sim, entrei naquela estação enfrentando o frio da madrugada, mas não podia ir adiante. E fui embora com aquela estranha mania de fazer pegadas em terrenos pedregosos.

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Mariposas

Alienados e letárgicos, insistimos em sustentarmos aquilo que éramos, enlaçados em nossos próprios dogmas noturnos, inconscientes do real. Contudo, ao abrirmos os lumes, somos absorvidos pelo ímpeto de livrar-se daquilo que já não nos serve mais.
Caminhantes e lúcidos, transgredimos a própria história, a fim de perder o que não é mais necessário. É imprescindível perder, perder-se e desconhecer-se. As mariposas prenunciam que desfazer-se do que nos conserva, rompendo os invólucros, nos leva a novas aquisições e amadurece os nossos sentidos, tão oblíquos.
Afinal, elas trazem presságios funestos e, atraídas pela luz, rodopiam numa valsa desconcertante, tão breve quanto a sua própria vida. Talvez, o caminho seja entrar e sair de casulos para pousar silenciosamente de asas abertas.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Solidão

Era uma vez um dia arrastado, consumido pelo isolamento;
Das horas retraídas,
Das possibilidades podadas,
Dos desígnios postergados.
Hoje, a solidão instalou-se e modificou o meu rosto, a ponto dele ficar obscuro e indefinido. 

domingo, 7 de janeiro de 2018

A febre

Eu não sei quem cuidará da minha febre
E dos meus dedos tortos
Mas ainda espero no casebre
O que deseja os meus restos mortos

Toma lá da cá, pode aguardar;
Das migalhas de tudo o que ouviu falar
Das cicatrizes que arranjei por lá
Das memórias que trouxe para cá

Tudo se foi pelos ares
Nada encontrará
Nem aquela canção; pode apostar
Não conseguirá mais cantarolar

Mas confesso que o medo tomou conta de mim
E eu não quero ficar mais por aqui
As recordações tristes; penduradas ali
Meu suor escorrendo; tu viste dai

Deixe-me ir embora, caro senhor
Levarei comigo tudo o que for furta-cor
O beija-flor, os discos do Belquior e o velho cobertor
A febre passará, meu desertor

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O silêncio

O silêncio alastrou-se pela casa
De repente, as emoções foram recolhidas
Como se as vozes queimassem em brasa
E provocasse minhas razões descabidas.
O silêncio compôs a letra de despedida
Como aquela estranha vizinha
Que, um dia, revelou-se descomprometida
E fez do seu jardim erva daninha.
Eu gritei,
Gritei, sem parar, diante de um quintal sem fim
Onde os jasmins foram abandonados
E onde o silêncio tocou clarim.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

O bilhete

Fiz uma longa viagem para desembarcar em seus horizontes, porém já previa que todos os protocolos sustentavam um cenário cheio de controles monótonos. Eu não sobreviveria aquele lugar sem regurgitar as horas que se passariam, e como transitei em estradas secundárias não pude apreciar o caminho que escolheram para mim.
Pudera ignorar os presságios que se pronunciariam e os sorrisos amarelos de quem tem pouco a dizer.  Porém, um dia, amanheci um pouco mais tarde, e com o bilhete nas mãos fiz-me forte para abandonar todos os embaraços e amarras que me sustentavam naquela estação.
Dessa vez, embarcaria em minhas próprias plataformas.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Samba-enredo

Parecia até enredo de escola de samba, mas era o meu “carnavalesco” retrospecto do ano que já maturou. Passei o ano desfilando a pé, usando adereços alusivos as tramas de todos os meus contos.
Não cogitei, em nenhum momento, usar carros alegóricos para a minha jornada tão subversiva. Também, não pus em cena as esculturas de papel marche, a fim de não desviar a atenção do meu cortejo repleto de simbologias. Durante minha marcha frenética, cruzei cidades inteiras devastadas por almas desertas.
Recolhi-me mais adiante, no intuito de reconhecer, com precisão, a cantoria e os batuques que iriam acompanhar toda a minha procissão. Quem entra na avenida pede passagem para prolongar-se ao longo do tempo. Eu passei sem ser vista, porém contagiei os passistas com a minha evolução.